terça-feira, outubro 10, 2017

Um porão chamado memória.



O cheiro de vela queimada no ferro quente de passar roupa que inundava o porão da casa de minha avó, ficou enterrado por mais de 50 anos.

Um esquecimento longo e profundo.

            Hoje fui acordada pelo silêncio aromatizado de uma memória que, de chofre, fui rastrear.

Começava assim minha jornada pela mnemotécnica proustiana: longe da razão, inscrita no corpo.

Nunca havia pensado de maneira objetiva e racional, nos longos anos de minha infância que passei junto à velhas mulheres, dentro de um espaço que hoje percebo como uma verdadeira caverna.

No curto caminho entre meu quarto e a lavanderia onde Fátima, generosa e delicadamente cuida das roupas de minha família, fui invadida pela atmosfera aconchegante que experimentei por toda meninice naquele pedaço de mundo abaixo da vida real que se dava acima de nossas cabeças.

Lá estava ela a esfregar uma vela na base do ferro elétrico.

Nada precisei perguntar: calmamente explicou que assim procedendo os resíduos acumulados nessa área seriam eliminados e as roupas, livres de manchas.
Nada precisei olhar pois não se tratava de encontrar a integralidade através de uma percepção intelectual: o meu percurso fora desencadeado pela sensação de acolhimento que fora desencadeada pelo olfato.

Entrar nesse subterrâneo de identificação conduzida por um dos cinco sentidos, acabou por me aproximar da formulação de Proust sobre o que nomina de memória involuntária.

            Livrar-se de algo que inadvertidamente possa deixar marcas, é tarefa fácil no mundo das materialidades, porém, subjetivamente, o processo é complexo e não está ligado simplesmente ao desejar ou não tal procedimento.
          
            Incontrolável, distante da razão e da vontade, essa memória que ele também nomina de memória poética, atravessa como que “gritando ” para o leitor: “esqueça para poder lembrar! “

E eis que a lembrança ganha contornos poéticos, no sentido que se afasta das armadilhas da racionalidade para se aninharem junto às memórias do corpo que nos acompanham por toda vida de maneira inconsciente.

Um evento desimportante e longínquo como a limpeza de um ferro de passar roupa com uma vela, ressurgi com potencia de ressignificação do vivido.
50 anos de esquecimento profundo e duradouro. 54 anos de vida.

Não me parece aleatório que, sem nenhum esforço, sem nenhuma técnica para tal, os esquecimentos carreguem uma certa autonomia poética, como versos à espera do lugar certo em um poema e as memórias que modulam minha existência, por outro lado, eclodam espontânea e alegremente.

Envelhecer, no sentido proustiano desses norteadores de nossa vida psíquica, parece ser portanto, a experiência pela qual certamente podemos nos reconectar com nosso eu mais profundo e assim perceber que a nossa busca pelo tempo que imaginamos perdido é uma jornada muito mais prazerosa e plena do que tememos.

Um retorno a nossa caverna ancestral, lugar onde o medo do tempo e da morte são ofuscados pelo prazer de ser afetado uma vez e muitas vezes mais pelo vivido.
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